sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Num sábado pela manhã....

Mais pela necessidade, e menos por prazer, que uma boa parcela de mandados é cumprido nas manhãs de sábado. Imagine a dificuldade de encontrar em casa alguém que trabalhe o dia todo.

Certa vez, quando trabalhava na Execuções Fiscais, a oficial de justiça Mariza Fernandes foi até um bairro levar uma intimação.
— Não posso receber! Estou com pressa! — disse o intimado.

Até aí não há muito problema. Faz parte do cotidiano de um oficial de justiça ouvir incontáveis ‘nãos’. Mesmo assim, o mandado foi cumprido.

No entanto, três dias depois, logo ao amanhecer, a servidora foi acordada pelo disparar da campainha de casa. Em sua porta estava o rapaz apressado:
— Eu vim avisar que a minha dívida está paga e não devo mais nada.

Mariza sentiu a pele ficar branca, a temperatura do corpo sumir e o chão amolecer. Em dois segundos, um milhão de coisas passaram pela cabeça da servidora. “Como o sujeito conseguiu o endereço? Ele pode estar armado?”, refletiu desesperada.

Apavorada e indignada, com as mãos trêmulas e sem saliva perguntou:
— Como você conseguiu meu endereço?!
— Eu anotei a sua placa e liguei no Detran.

No momento em que ouviu a resposta, a oficial se sentiu ainda mais vulnerável. Sentiu medo de sofrer na pele por ter feito o seu trabalho. O rapaz deu o recado e foi embora. Mas Mariza, pela primeira vez, depois de 15 anos de profissão, sentiu medo por ser uma oficial de justiça.

Uma liminar, uma vida!

Gabriel tem oito anos e sua mãe está desesperada. Um câncer no intestino obriga o pequeno a passar muitas horas em sessões de quimioterapia. Como o remédio não distingue a doença e os cabelos, ele está careca.

A mãe é assalariada e por mês recebe R$ 1600,00. Não é preciso falar das dificuldades que passa para pagar o tratamento do filho, mas é importante dizer que ela vende trufas, as mais gostosas do bairro, pelo menos ela diz.

Numa sexta-feira qualquer Gabriel teve uma crise. Os medicamentos, tanto para a dor como aqueles que fariam efeito contra a doença, ficariam três vezes mais caros que o rendimento mensal da mãe.

O médico orientou e a mãe, que já não via a diferença entre maços e pacotes de cigarros, procurou uma advogada. Não foi preciso muita conversa para a jurista pedir que o Estado pagasse o medicamento. Ao final daquele dia a liminar foi dada.

Sem muitos exageros, a vida do menino agora estava nas mãos do oficial de justiça, que precisava chegar à Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, na Av. Doutor Enéas Aguiar, antes do final do expediente. Do Fórum Pedro Lessa até à Secretaria são poucos 3,2 km, mas foram desesperadores.

Ao chegar, o portão está trancado. O oficial sente a liminar se transformando num papel vazio, desprovido de sentido. Mas convence o guarda para que o deixe entrar e encontrar um responsável. A decisão está encaminhada. O oficial não sabe, mas a mãe do Gabriel sorriu muito.

Na cidade Tiradentes

A Cidade Tiradentes é o maior complexo urbano da América Latina, com 40 mil residências, em sua maioria, construídas pela COAHB (Companhia Metropolitana de Habitação) e pelo CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo).

Localizada no extremo leste da Capital, no bairro não há a infra-estrutura para as necessidades básicas dos trabalhadores. Além disso, como praticamente não existem ofertas de emprego, o lugar se transformou em cidade dormitório.

Estima-se que a população seja de 220 mil habitantes, ‘dividida’ entre a Cidade Formal (constituída pelos conjuntos habitacionais) e a Informal (constituída por favelas e construções irregulares). A média salarial de um pai de família na Cidade Tiradentes fica entre R$500 e R$1200.

Foi nessa região que o oficial de justiça, Mario El Razi, servidor federal desde dezembro de 1991, atuou sozinho por seis anos. Ele conta que a grande maioria dos mandados que cumpria na região eram relacionados à reintegração de posse.

Não foram poucas as ocasiões em que cumpriu mais de cinco mandados em um mesmo condomínio. “Em uma das vezes o porteiro me alertou para que eu não errasse a porta do apartamento, pois ao lado havia uma célula do PCC”, disse.

No entanto, Mario revela um outro caso, em que ele ficou realmente assustado. Num dia qualquer o oficial estacionou seu carro em frente ao condomínio onde cumpriria o mandado. Entrou, se apresentou, cumpriu o mandado e não houve maiores problemas.

Quando saiu, viu um menino de uns 12 anos colando um bilhete no vidro de seu automóvel. Ao ler, o servidor empalideceu. Os dizeres: “Se você continuar vindo aqui, nós vamos até a sua casa!”, seguido de seu endereço, em Mogi das Cruzes, abalaram os nervos do oficial de justiça.

“Eu cheguei a segurar o menino pelo braço e perguntei quem havia mandado pregar o bilhete”, disse Mário. A resposta foi mais aterrorizante: “não sei moço, só mandaram eu colocar o bilhete, mas eles estão aqui, estão te vendo neste momento”.
Por ser o único oficial de justiça trabalhando naquela região e como essa situação perdurou por muito tempo, o servidor considera que acabou ficando visado. “Eu fiquei muito assustado, mas não mudei de endereço, porém meu filho agora mora com meu irmão”, disse.

No meio da tarde


Meio da tarde, o tempo está nublado. Há alguns dias, o congestionamento bateu o recorde de 266 Km. Caso chova o trânsito pode piorar. A rádio anuncia: estamos com 98 Km de lentidão no centro da Capital.

“Essa viagem a Pirituba pode demorar mais do que as últimas... esse mandado parece ter cola, não desgruda da mão”, pensa o oficial de justiça Dirceu Lego*, ele trabalha no Fórum Cível Pedro Lessa.

“Essa é a quarta diligência faço, não é possível, esse cara só pode estar me evitando”, pensava Dirceu. Entre uma acelerada e outra, uma passagem de marcha e outra, lembrou de uma das conversas que teve com o zelador do prédio:
— Ele estava aqui até agorinha. Mas a mãe deve estar por aí, não vi ela saindo.
— Mas a empregada me disse que ela não recebe visitas, pois está doente?
— Doente nada, ela sai todo dia.

“Uma semana depois, o mesmo zelador disse que recebeu uma ordem para não atender e a emprega disse a mesma coisa”, pensou mais um pouco e concluiu: “Com certeza ele está me evitando”.

Pode ser coincidência, mas dessa vez o intimado estava em casa. Melhor dizendo, Dirceu esperou por 40 minutos até ele descer do prédio e praticamente ser intimado no meio da rua.

* o nome do oficial de justiça é fictício.